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17/11/2022

Confira os ganhadores do 1º Concurso Literário

Conheça os vencedores do 1º Concurso Literário da APM Regional São José dos Campos e seus trabalhos:

1º lugar: Yasmin Sousa Lyra (estudante 2º semestre – Universidade Anhembi-Morumbi)

Nada mais importava

Meu pai era engraxate. Todo sábado às 6h ele me levava junto para seu trabalho. Esperava a semana toda por essa manhã. Meu pai abria a porta devagar e me chamava baixinho. Fingia que dormia para esconder minha empolgação. Ele preparava para mim meus biscoitos favoritos com leite e bebia o café frio do dia anterior, pegava a maleta marrom e pesada com seus materiais e me olhava perguntando “pronto para o nosso melhor?”. Eu pulava da cadeira ainda mastigando os últimos biscoitos e falando com todo fôlego, “vamos juntos”. Em uma mão ele segurava a maleta e na outra ele segurava minhas mãos. Partíamos pelas ruas cinza e frias, meu pai me entretinha a todo momento. Cantávamos, conversávamos e ríamos.

Chegávamos na praça Antônio Prado e eu me sentava no cantinho de um dos bancos largos e observava. Meu pai apoiava com cuidado a maleta marrom no chão. Abria e retirava a pesada caixa preta colocando-a à frente do banco. Separava os outros materiais em uma improvisação de mesa feita com a maleta marrom. Eu já sabia o que fazer. Escova pequena, escova grande, paninho e três frascos. Organizava na ordem que ele me ensinou depois dos meus incessantes pedidos para ajudá-lo. Seu Bastião, da loja de sapato ao lado, chegava resmungando seus problemas, mas assim que nos via, um meio sorriso se abria. Não havia muitas crianças por ali, apenas os adultos com suas feições sérias e fechadas. Alguns desviavam seu caminho para vir cumprimentar meu pai e conversar. Era incrível como as feições dos outros mudavam quando meu pai começava a falar. Ele parecia saber conquistar as pessoas, entretê-las e fazê-las rir da melhor forma. Alberto da lanchonete próxima nos ouvia e corria para nos oferecer pingado e pão careca. Eu comia o pão macio muito empolgado com a chegada do primeiro cliente. Meu pai guardou seu pão e enquanto o cliente se sentava, meu pai acomodava seu pé em cima da caixa, agachava em sua posição de trabalho e iniciava a transformação. A partir desse momento nada mais importava. Meu pai se concentrava em cada detalhe do sapato. Pedia-me o sabão e a escova pequena, era minha vez de agir. As mãos de meu pai eram firmes e sabiam o que fazer, eu entregava-lhe sabão com medo de derrubá-lo e desejando em um dia ter as mãos como as dele. Ele esfregava o sapato, formando espumas brancas sobre as manchas cinzas. Seus olhos não desviavam, pedia-me o pano seco para remover todo o sabão, em seguida, o creme de sapato. Um brilho bonito já surgia do sapato cinza. Meu pai alternava entre a escova e o pano esfregando muito firme e rápido. Eu entregava-lhe o creme preto e ele espalhava por todo sapato, continuando a esfregar, fazendo a mágica acontecer. O sapato que era cinza ficou da cor do céu à noite e eu jurava que conseguia ver algumas estrelas nele.

Dr. Domingos nos cumprimentou, meu pai contou que ele era médico e me perguntou se eu gostaria de ser como ele um dia. Dr. Domingos olhou assustado para meu pai, que disse ao dr. para me contar o que ele fazia como médico. Dr. respondeu que ajudava as pessoas, eu, portanto, pensei
por um momento e perguntei se ele ajudava as pessoas como meu pai. Domingos respondeu que era de uma forma diferente. Apanhou um instrumento estranho do bolso, colocou dois ganchos em meus ouvidos e apoiou a outra extremidade gelada em meu peito e disse-me para escutar o som. Eu ouvia um som engraçado e ele, com um sorriso, disse-me ser meu coração batendo. Comecei a rir. Olhei para meu pai e ele ria junto comigo. Assim que dr. Domingos se despediu, nossa atenção voltou para o cliente da loja de sapato ao lado. Havia um homem magro e alto procurando por um sapato velho, mas seu Sebastião disse-lhe que não havia para doação no momento. Meu pai o chamou e pediu para que se sentasse no banco à sua frente. Antes que o homem pudesse contrapor-se, meu pai apoiou seu sapato surrado sobre a caixa e pediu-me o sabão e a escova pequena. Ali iniciou-se mais uma transformação enquanto meu pai fazia perguntas para aquele homem e descobriu a sua recente demissão e a necessidade de um sapato melhor para conseguir um serviço porque estava passando dificuldade com sua família. Meu pai ouvia atento e engraxava como sempre fazia. Após tornar aqueles sapatos em visualmente novos, entregou na mão do homem aquele pão e, apoiando as mãos em seus ombros, disse-lhe que enquanto ele tivesse esperança não havia nada que ele não pudesse fazer. O homem agradeceu e se despediu. Meu pai sentou, olhou para mim e afirmou ser essa a razão de estarmos aqui.

Durante uma manhã no hospital, enquanto atendia um paciente, realizei tudo de forma costumeira. Após a finalização, o paciente me questionou se eu era filho do engraxate da praça Antônio Prado. Espantei-me com a pergunta inesperada e o questionei como ele me reconheceu. Eu reconheceria você até pintado de branco, seu pai acolhia as pessoas, a personalidade e o caráter dele irradiavam em qualquer ambiente em que ele estivesse, seu esforço enquanto trabalhava era inigualável até eu observar você hoje. O modo que você me atendeu e me tratou. Você possui muito do seu pai. Ele transformou minha vida quando me ajudou engraxando meu sapato e me dando pão. Eu consegui aquele emprego e, hoje, sou dono da minha própria empresa. Esse médico que você é hoje é muito além da melhor universidade do Brasil que você cursou, dizia ele apontando para o bordado em meu jaleco, é também por causa do seu pai, que sem perceber ensinou-lhe as maiores virtudes da vida. A arte da medicina não é ensinada na universidade, é bagagem adquirida e seu pai ajudou você a preencher a sua com as melhores coisas que a medicina precisa. Não contive minhas lágrimas. Lágrimas de saudade de meu pai e de insegurança da profissão. Não sei o motivo das lágrimas, mas enquanto você tiver esperança não há nada que não possa fazer. O dia que finalmente entrei na sala de cirurgia, olhei para todos da minha equipe, e perguntei: prontos para o nosso melhor? Eles me responderam: vamos juntos. A partir daquele momento nada mais importava.

2º lugar: Maria Beatriz Tavares Figueiredo (estudante 2º semestre – Universidade Anhembi-Morumbi)

Arte do Curar

Estetoscópio gelado.

Toca no peito,

Toca na alma.

O coração pulsa, grita,

Deseja ser ouvido:

Bate traçando linhas,

Bate traçando histórias.

A lanterna médica acende,

Revelando a garganta,

Iluminando os caminhos,

Desobscurecendo as soluções.

Alfaiate caprichoso

Que faz lindos bordados,

Molda, costura e remenda

É o costureiro de seus operados

Na linha de frente,

Também marca presença

Defendendo com amor,

Combatendo a doença

Cada um que entra,

Cada um que sai,

É um mundo a ser descoberto,

Um mundo a ser cuidado

Pelo astronauta de jaleco

E o médico,

Tal como numa dança,

Conduz e é conduzido,

Pelo adulto e pela criança,

Pelo idoso e pelo recém nascido,

Nessa arte do curar.


É preciso ser dançarino, ser feiticeiro,

Detetive e soldado,

Tradutor e conselheiro,

Mas sobretudo humano

Para tratar um machucado.

3º lugar: Barbra Rafaela de Melo S. Azevedo

Segue o jogo

De dia cirurgia:
Laparotomia, gastrectomia, colecistectomia, trauma…
Haja alma!
De noite clínica:
Infarto, derrame, tendinite…
Haja gripe e sinusite!
E assim o turno dobra, triplica, quadruplica…
Aí complica!
Guarda o bisturi, pega o estetoscópio, mudar a cor do privativo…
É osso!
E o meu almoço?
E assim segue a doutora…
“Coxinha”, arrogante, mercenária…
Ao invés de aperto de mão, dedo na cara!
Chama o jornal!
A médica foi comer, tomar água, fazer xixi…
Não pode, isso é ócio!
Medicina é sacerdócio!
O tempo livre é pro livro:
Pra não errar, não matar…
Pra, da próxima vez, saber tratar!
Péssima companhia:
Sempre cansada, pilhada…
Só quer falar de paciente, da cirurgia de seis horas que arrancou a doença, de esperança!
Não sabe nada do mundo…
Porque a guerra ali é outra:
O “reality show” é o capotamento, o tiro, a queda, a facada…
A cirurgia de madrugada!
Acabou o plantão?
Manda mensagem pro colega:
Pra saber se acertou o diagnóstico, se o doente foi cuidado, se não deu tudo errado!
E a vida dela vai ficando de lado:
Planos adiados…
Nada encerrado!
Mas, quanta alegria no dever cumprido:
Na vida arrancada das garras da morte…
Que sorte!
Segue o jogo:
Tudo de novo, mais um plantão…
De todo o coração!
O “Médico dos médicos” vai à frente:
Quebrando barreiras, arrancando correntes…
Capacitando a doutora, pelo bem dos pacientes!

3º lugar: Letícia Cristina Rodrigues Santos (estudante 8º semestre – Universidade Anhembi-Morumbi)

ELA, ele, eu?

Sr. Carlos teve ELA. Esclerose Lateral Amiotrófica.

Começou aos 60, uma fraqueza que chegava de mansinho e não partia. Às escondidas, amassava alho, mastigava devagar, engolia, “alho tudo resolve, vai resolver isso também”. As pessoas achavam esquisito. Depois foi a fala. Titubeava, enrolava, era difícil entendê-lo. As pessoas se esforçavam. Então vieram as cãibras e espasmos musculares, o pescoço caiu, a cabeça pendeu, e precisou usar colar cervical. As pessoas não entendiam. “O que ele tem?”. Ele não sabia, a família também não. Sabiam que Sr. Carlos havia mudado. Aquela presença sempre alegre, que ajudava a todos do bairro, tornou-se uma pessoa sensível, se emocionava fácil, chorava: “não sei mais distinguir tristeza e felicidade”. Por fim, a irritação se instalou: “não posso mais ajudar as pessoas ao meu redor”. E atravessando isso tudo, consultas, exames laboratoriais, dolorosas eletroneuromiografias, exames de imagem, permeados de sustentadas dúvidas e aflições.

Sr. Carlos era carioca, pai de duas filhas, casado com a mesma mulher havia mais de 20 anos. Sua fé o movia e motivava, era um conhecedor nato da bíblia e dos versículos, orava por quem precisasse. Era amante da bossa nova de Tom Jobim e do samba de Paulinho da Viola, mas também, de Frank Sinatra e Andrea Bocelli. Gostava de cantar, de reunir a família aos fins de semana para fazer aquele churrasco. Amava seu neto. E bala de tamarindo.

Seis meses após os primeiros sintomas, soube ser portador da doença incurável. O SUS fechou o diagnóstico, mas não abriu a porta aos Cuidados Paliativos, que oferecem apoio e conforto às pessoas com doenças graves e que ameaçam a continuidade da vida, bem como a seus familiares. Não foi fácil receber o diagnóstico – “como assim? Então minha vida acaba ali, logo adiante, em breve, por conta dessa doença que nem a Medicina sabe de onde veio?”. O que teria sentido, ao receber o diagnóstico? Nunca saberemos. Ficou emotivo, mas o que sentiu, é algo só dele, algo que só pessoas que recebem um diagnóstico de doença neurodegenerativa podem vivenciar. A família, desolada, buscou nas orações e no apoio espiritual algum alento para a dor antecipada da perda da pessoa amada.

Foram meses difíceis. Sr. Carlos piorava lenta e progressivamente, cumprindo a profecia médica e a história clínica da doença. Deixou de ser vigia de uma escola de inglês, trabalho que, aposentado, realizava com prazer; ficou cada vez mais emotivo e fraco, suas atitudes eram irreconhecíveis. A medicina, o medicamento, a fisioterapia, o cuidado amoroso, dedicado, cuidadoso, cotidiano da família, não impediram a progressão da doença. E seis meses depois do diagnóstico, Sr. Carlos faleceu.

Sr. Carlos é meu pai.

Hoje, estudante de Medicina, percebo o quanto gostaria de tê-lo aqui. Compartilhar com ele as técnicas que aprendi, as aulas de ginecologia, pois era um dos sonhos dele ser ginecologista, e poder contar como é atender um paciente e ajudar em uma cirurgia.

Atualmente, aprendendo diariamente a cuidar, percebo que a medicina, isoladamente, era insuficiente para ele. Como disse Abel Salazar: “o médico que apenas sabe medicina, nem medicina sabe”. E vejo que recebeu outros lenitivos: amor, cuidados e a atenção de médicos e profissionais da saúde que o viram com carinho, como ser humano que é, na complexidade e beleza da vida, e não somente mais um paciente com ELA.

Às vezes tenho a impressão de que ele ainda vai aparecer. Vai falar dos seus cantores prediletos: Adoniran Barbosa, Júlio Iglesias, vai pedir para eu ensiná-lo a baixar músicas, vai reclamar do Fernando Henrique Cardoso e vai rir com os Três Patetas. Parece que foi ontem que cantamos juntos – desafinados – Tiro ao Álvaro, acompanhando a Elis Regina e o Adoniran Barbosa. Parece que foi ontem que assistimos na televisão ao concerto do Andrea Bocelli no Central Park. Ou que vamos ouvir, pela milésima vez, Georgia on My Mind, de Ray Charles.

Joan Didion diz em seu livro O Ano do Pensamento Mágico que “quem sofre uma perda fica com um certo olhar que talvez seja somente reconhecível pelos que já viram aquele mesmo olhar no próprio rosto”. A falta do meu pai ainda dói e observo a mesma dor naqueles que perderam alguém que amam. Vinte e sete de dezembro de 2015.

Dois dias depois do Natal, dois dias depois que celebramos o nascimento de Jesus, meu pai se foi. Mas ainda parece que ele vai entrar por aquela porta. Sem ELA. Para ficar conosco. Sorrindo…

Just an old sweet song, keeps my Dad on my mind

Confira todas