A perversidade da
medicina baseada na tabela
“Vem,
me dê a mão; A gente agora já não tinha medo; No tempo da maldade acho que a
gente nem tinha nascido.” Chico Buarque
Laudo de ultra-som de abdômen
total: “Tudo normal” Mas o “médico” diz que tem um grande cisto no ovário.
Diz, não escreve, porque o exame pedido é abdômen total e não ginecológico e
a operadora no total só paga abdômen superior... Volta a paciente ao médico,
que a manda para outro médico, agora ginecologista, que pede o novo exame.
Operadora pede, por telefone, justificativa. Se não, não autoriza. O que diz
o médico solicitante? Que o examinador disse que tinha um cisto de ovário?
Prove!!! Escreve qualquer coisa, arrisca seu CRM e sua reputação. Vem o
laudo: Tumor cístico de ovário com vegetações em seu interior. Pede um
Doppler, mais uma justificativa, perda enorme de tempo, papel, internet,
telefones, e principalmente esperança! Laudo sugere câncer de ovário.
Encaminha para o oncologista que pede cirurgia. Auditor – médico? - pede
“provas” para autorizar... E a paciente? Ué? É importante?
Paciente chega ao consultório
sem a carteirinha, com prurido vaginal intenso. Tenho o número na ficha.
Atendo e peço para ela voltar amanhã e trazer a carteira para passar no
autorizador? Ela volta, traz a carteirinha, não estou no consultório, a
consulta é registrada... Fraude? E a paciente? Ué? É importante? Será que
ninguém nesta operadora já teve prurido vaginal?
Qual cirurgião ao pedir uma
autorização não é obrigado a escolher, dentro da tabela, a cirurgia de maior
porte. Não por fraude, mas simplesmente porque se pedir, a de menor, e no
ato operatório for encontrado outra coisa, ele terá de pedir, justificar,
provar, jurar inocência e a operadora não pagará a conta ou atrasará,
atrasará, atrasará? O que deve fazer o cirurgião? Fechar e pedir nova
cirurgia?
E aí, grandes colegas
cirurgiões. Apendicite é diagnóstico clínico ou ultra-sonográfico? Talvez
raios-x? Deitado, em pé? Ou hemograma? O que faz e fecha o diagnóstico? E o
que dizer para o auditor se a laparotomia for branca? Ou se ele pedir
“provas” do seu diagnóstico?
Criança com dor, pediatra
atende, marca exames, pede retorno, vê, medica. Uma semana depois febre,
nova consulta, outro diagnóstico, mas está dentro dos 30 dias, atendo ou
mando procurar um pronto-socorro pediátrico? Se é outro diagnóstico porque a
operadora não paga? Fraude? Do médico ou da operadora? Para mim é uma fraude
da operadora e contra a sociedade, contra a humanidade!
Gravidez de alto risco.
Consulta paga pela operadora só de 30 em 30 dias? O que fazer? Porque é o
médico que tem de pagar a conta. O que fazer? Internar? Lembre-se que nestes
casos as operadoras só autorizam umas 12 horas e você vai ter de justificar,
provar, jurar inocência ou ser acusado de fraude. Mais um crime. Contra a
medicina, contra a gestante, contra o feto, contra a humanidade!
A pergunta que faço como
médico é: Será que a medicina baseada na tabela não está mudando
profundamente a maneira de exercermos a medicina? Será que as operadoras não
estão causando um mal tão grande na nossa forma de raciocínio, diagnóstico e
tratamento que, talvez, o dano seja não só tão grande como irreparável?
Auditor ou outro colega,
talvez até dirigente de uma operadora, com dor precordial. Já fez check-up
nos últimos trinta dias e tem uma agravante clínica importante, está sem a
carteirinha. Portanto, será retorno ou talvez até fraude... Atendo? Peço
exames? Ou...
Dr. Sérgio dos Passos Ramos,
vice-presidente, APM São José dos Campos
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