O Inferno
“É,
portanto, no menor dos círculos, no nono e último, junto com Dite (Lúcifer),
onde são punidos os que traíram aqueles que neles confiaram...”
Dante, 1265, 1321.
Poucos sabem, mas Dante Alighieri além de filósofo, escritor
e militar, também foi médico.
Para Dante o pior dos crimes, o que levava os condenados ao
nono círculo do inferno, junto com o próprio demônio, Lúcifer, era a fraude
contra os próprios companheiros, contra os que confiavam nele. Para Dante
não havia crime maior que a fraude contra os que confiam em você.
Se, um dia, a história da medicina for escrita no Brasil,
pois este país não privilegia nem cultua a sua história, não será possível
excluir o malefício que a medicina suplementar tem causado à Medicina,
ciência e arte milenar, ofendendo tanto pacientes como médicos, rasgando os
códigos de comportamento, ética e os protocolos científicos.
Na Clínica, alicerce da Medicina, o tempo exíguo que se
destina ao paciente, sua história, antecedentes familiares e socioculturais,
exame físico (existe?) causado pelos irrisórios pagamentos a esta
atividade magistral, não permitem ao médico exercê-la com a sabedoria que
necessita. Não há consulta sem exames subsidiários em grande quantidade. O
“diagnóstico” ou “hipótese diagnóstica” não são fruto do raciocínio lógico,
mas sim da tecnologia desenfreada.
Culpa das operadoras que pagam mal aos médicos, culpa dos
pacientes, que de posse de passaportes milagrosos e supostamente gratuitos –
as carteirinhas dos convênios - mudam de médicos mais do que mudam de
roupas, consultado-se com vários até obterem dos mesmos os exames que,
sabiamente pesquisados na internet, julgam essenciais para seu “tratamento”.
E culpa dos auditores que exigem exames para comprovar
diagnósticos clínicos. Hoje para se conseguir autorizar uma cirurgia de
joelho exigem os médicos auditores a ressonância nuclear magnética, exame
este que custa mais de dez vezes o valor recebido pelo cirurgião. Fazem isto
em nome da medicina...
Já na cirurgia as coisas vão pior. O CH cirúrgico está
congelado há mais de dez anos ou, se corrigido, o é abaixo até dos índices
oficiais da inflação. Dados oficiais mostram que o CH cirúrgico da Unimed de
nossa cidade teve uma diminuição de 7% entre 2010 e 2011. Mais do que um
desrespeito pelos cirurgiões, tal desvalorização dos honorários cirúrgicos
tem causado um novo fenômeno: faltam cirurgiões. Uma cirurgia de câncer é
paga ao cirurgião cerca de 100 reais. Pergunta-se se existe auxiliar para
esta cirurgia... Quem se habilita a receber 30 reais por mais de duas horas
de trabalho...
Para contornar esta crueldade descomunal praticada pelas
operadoras contra os cirurgiões começam as distorções, a medicina baseada na
tabela, a cobrança por fora, o ato sem auxiliar, ou simplesmente o abandono
do paciente.
Como disse, o malefício que as operadoras de planos de saúde
estão fazendo contra a Medicina no Brasil é muito maior do que o que podemos
ver hoje. Métodos novos e não baseados na ciência acabam por se integrar à
maneira como exercemos a Medicina, influenciando nossas condutas e
principalmente dos médicos jovens.
Não tenho certeza se existe o inferno após a morte. Mas com
certeza os médicos e a medicina no Brasil estão vivendo um inferno no
exercício da profissão graças às operadoras de planos e suas relações com os
médicos. Tudo isto com o conivente silêncio da sociedade...
Vou reler Dante para verificar para onde vão os que se
omitem...
Sérgio dos Passos Ramos
Presidente da Associação Paulista de Medicina São José dos
Campos
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