Graças a Deus
“Todo
homem pensa que Deus está do lado dele” — Jean Anouilh,
Dramaturgo francês, 1910-1987.
Não é meu objetivo discutir neste artigo a crença pessoal do
médico, mas uma das frases mais comuns ouvida por nós médicos quando
perguntamos a um paciente como está, após um tratamento e as coisas
vão bem a resposta é: Estou ótimo, Graças a Deus.
No entanto me pergunto qual a resposta se as coisas estiverem
indo mal? Se quando vão bem atribuímos à divindade o sucesso, se
estão mal a quem devemos atribuir? À antítese da divindade, o
demônio? A história é cheia de citações que atribuem a doença ao
demônio e a saúde à divindade. A saúde à recompensa por uma vida
correta e a doença ao pecado. A frase “expulsar os demônios” para
trazer de volta a saúde é muito antiga e permeia muitos textos
religiosos. O termo pharmakon do grego arcaico significa
sacrifícios feitos aos deuses em busca de curas.
Foi Hipócrates e a sua escola, no século V aC, quem começou a
separar a saúde da divindade e a doença do pecado e dos demônios,
estabelecendo as causas naturais da doença.
Delírio deste autor que não tendo mais o que escrever e
pressionado pela redatora deste Jornal do Médico passa a divagar
sobre religião?
Não. Porque então o assunto?
Porque num mundo cada vez mais tecnológico, a tendência de
culpar o médico pela doença está assumindo um grau muito grande na
concepção da população. A pergunta feita ao médico, porque estou com
esta doença, porque vocês médicos não conseguem me curar, tem sido o
cotidiano de cada um de nós.
Expressões erradas como erro médico para justificar a evolução
natural da doença para a morte ou para o dano, independente e,
mesmo, apesar da ação do médico, passaram a fazer parte do ideário
da população. Se as coisas vão bem, graças a Deus, se vão mal, culpa
dos médicos.
Caiu um avião? Dezenas de mortes na rodovia? Chamamos a isto
de acidente de aviação, acidente de trânsito. Nunca erro de aviação,
erro de trânsito, erro de engenharia. Porque então aceitamos, mesmo
e principalmente entre nós a frase “erro médico”? Porque não
acidente médico? Que pode ter causas como os acidentes de aviação,
trânsito e outros têm, mas sem a conotação pejorativa de “erro”. Sem
o prejulgamento da própria expressão.
Precisamos ser mais precisos quando explicarmos para nossos
pacientes que a doença tem causas e evolução natural e que nosso
papel como médicos é tentar mudar o curso desta doença e para isto
usamos técnica, medicamentos, ações consagradas pela ciência e que,
sim, todo nosso esforço pode não curar ou minimizar a doença.
Precisamos convencer nossos juízes, advogados, a sociedade em
geral, de que se um paciente morre ou tem dano durante uma doença, a
causa da morte ou do dano foi a doença e não o médico!
Precisamos sim exorcizar a nossa profissão, pois a
sociedade, não acreditando mais em demônios, até porque, demônios
significam pecado e culpa pessoal, está tentando criar novos
demônios para culpar pela doença. E estes novos demônios estão
tentando atribuir a nós, médicos.
Dr. Sérgio dos Passos Ramos
Diretor de Defesa Profissional SJCampos