Final de
vida
Dr.
Roberto Schoueri Jr.
Logo
cedo, ao cumprimentar meu paciente na UTI, ele me respondeu: “Doutor, não
queira envelhecer. É tão humilhante!” Deu-me então a deixa para conversarmos
um pouco sobre a experiência de ser cuidado, de perder a pose, de receber ao
invés de dar.
Ora, se
dar aos outros é um movimento bom, caritativo, tem que ser bom para ambos os
lados, portanto receber também é bom; é o outro lado da mesma ação boa. A
raiz da palavra humilhante é a mesma da palavra humildade; será que
tornar-se mais humilde, menos onipotente nos diminui tanto assim? Será que
ao nos aproximarmos da morte, pelo menos aí, não é a hora de sermos
humildes, como na lição do lava pés? Ele pensou, refletiu, mas não sei se se
convenceu muito. Aprendemos apenas a viver, a sermos potentes, a impotência
deve sempre ser extirpada, como um tumor que nos mata. O instinto da vida
nos obriga a sermos cegos diante da realidade da morte. Durante a vida,
falta em nosso aparelho psíquico este chip, esta possibilidade de pensar e
sentir a morte.
Este
paciente tinha uma insuficiência respiratória crônica. Ex-tabagista,
oxigênio domiciliar, múltiplas internações na UTI. O cuidado paliativo aí se
impunha. Ele estava ciente do fim, da perda gradativa da vitalidade. A
experiência de morrer, porém, está envolta em uma dor necessária, afinal
como se desenraizar da vida sem dor, sem chorar a perda? Na experiência de
nascer, à dor do canal do parto se segue a ânsia de viver ou, para a mãe, de
dar à luz. Já no “canal de partirmos” o consolo é menor. Não são os
ligamentos que se afrouxam para a passagem do concepto – são as ligações
amorosas que têm que ser afrouxadas nos momentos de despedida, um
desprendimento mútuo.
Morrer é
uma experiência solitária, corajosa.
A
depressão que envolve o final da vida é atenuada pelos antidepressivos que,
ao atenuar as emoções permitem que o sofrimento seja mais aceitável, mais
administrável, sem a perda da dignidade, com a manutenção da integridade
psíquica. Assim também a analgesia competente, as intervenções cirúrgicas
cuidadosas, econômicas, o cuidado proporcional à situação vivida. Neste
momento, exige-se do médico competência e delicadeza.
Sedare dolorem opus divinum est
– e esta tem sido nossa
crença, nossa missão. Porém, como nascer sem dor física? Como
descaracterizar o parto natural, a necessidade de o concepto, ao passar pelo
canal do parto, expulsar o líquido dos pulmões? Como morrer sem dor
psíquica? Ao perceber-se morrendo, ao despedir-se da vida, dos amores, das
alegrias, como não chorar? A depressão crônica, as perdas mal resolvidas
(adeus mundo cruel!), são contingências da vida, todos temos sucessos e
insucessos; cabe a cada um de nós vivermos com a clara noção de nossa
fragilidade, como se a morte fosse nos encontrar a cada dia.
Nesta
situação, somos o parteiro, o que ajuda a parir o concepto, ou o que ajuda
no momento de partir o moribundo. Um pouco de empatia, um pouco de
experiência, outro tanto de paciência, humildade, compartilhamento,
incerteza, tudo junto pode tornar esta experiência um pouco menos dolorosa –
diminuir a dor, mesmo que não seja possível aboli-la, aliviar o sofrimento,
não anestesiá-lo, permitindo ao nosso paciente idoso saber que está
morrendo, assim como permitimo–lhe chorar ao nascer.
Dr.
Roberto Schoueri Jr. é médico geriatra, diretor do Hospital REGER
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